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Não maltratarás o amor
Esta frase deveria estar exposta, rabiscada, pintada, em todos os cantos de todas as cidades e freguesias e bairros.
Não maltratarás o amor deveria fazer parte dos mandamentos que comandam a vida.
Eu sou uma céptica, como saberão, mas por detrás do meu cepticismo esconde-se um enorme respeito pelo amor, e pelo que este representa, quer seja consumado, quer seja abandonado, quer seja não correspondido, quer seja platónico, quer seja fugaz e infantil. Julgo que o grande problema que me separa das outras pessoas (algumas, porque muitas pensarão como eu), é apenas etimológico. As pessoas julgam que o amor é uma coisa e se manifesta de maneira X, eu julgo que é outra e que se manifesta de forma Y.
As pessoas não respeitam o amor nem tão-pouco a memória de um amor já apagado, morto, enterrado. E não me refiro a momentos de raiva e mágoa em que soltamos palavras duras a quem nos fez sofrer ou desiludiu, mas refiro-me ao íntimo, àquela concha interior onde guardamos tudo de importante, tudo o que nos fez sentir.
As pessoas, ou parte delas, limita-se a achar que gosta, a achar que ama, a achar que basta. Limita-se a fugir quando não dá mais, não batalha até ao último instante, não diz o que tem a dizer tendo como vantagem uma estabilidade confortante que não dá grandes dores de cabeça. As pessoas terminam relações porque deixaram de gostar ou porque deixou de funcionar, e partem cegamente em frente como se meses, anos, décadas de uma vida partilhada não mais fosse que um café banal com uma pessoa indiferente a quem não devemos nada.
Sim, devemos seguir em frente, pois o primeiro amor a não ser maltratado deve ser o amor-próprio.
O que quero tentar explicar é que o amor merece mais do que palavras bonitas, fotografias emolduradas, presentes, surpresas e promessas. O amor, ainda que estendido no chão e espezinhado, merece respeito e mesmo que nada dessas recordações façam sentido e nos pareçam ridículas, o que realmente deve ser recordado são os momentos de partilha, em que demos do fundo de nós um pedaço do que somos. E é simplesmente nisto que o amor é maltratado: as pessoas partem, esquecem as palavras, as fotografias, as promessas, mas esquecem também que um dia alguém abriu o peito e de lá retirou um pedaço de humanidade para colocar nas nossas mãos. Na esperança de que respeitássemos sempre aquele pedaço vivo e único que retrata a pessoa com quem estamos e que ali permanece nas nossas mãos, mais ou menos amachucado quando deixamos de estar também.
E as pessoas não respeitam. E mesmo sabendo, atiram para um qualquer lugar sujo e escuro aquele bocado de nós tão, mas tão importante que partilhámos, não pensado sequer que isso é diminuir a outra pessoa. Que isso é maltratar o amor que um dia existiu ou que se julgou existir. Que isso é simplesmente demonstrar que nunca estenderam realmente as mãos para nos receber nem por pedaços, nem por inteiro nas suas vidas.
Porque mesmo quando se deixa de gostar de alguém de quem já se gostou muito ou pouco, ainda conhecemos essa pessoa ou temos uma ideia de como a conhecíamos, e faremos de tudo para a respeitar, pois sabemos o que as magoa, o que as irrita, o que as transtorna, o que as incomoda, o que as faz sentir mal. E é aqui que quase toda a gente maltrata o amor: bate a porta atrás de si e faz de conta que não sabe nunca como aqueles olhos já choraram com determinadas palavras, esquece-se em como já reconfortou aquele peito por lhe terem magoado assim ou assado, ignora os medos, as mágoas que lhes foram confidenciadas ao ouvido nos momentos de entrega e se for preciso pisa esse mesmo coração da mesma forma ou de outra.
Essas pessoas maltratam-se a si próprias também, pois se a beleza está nos olhos de quem vê, amar só poderá estar no coração de quem se ama a si.
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